... BRASIL: Projeto valoriza brincadeiras de comunidades tradicionais

Ao todo, oito escolas públicas e comunitárias são atendidas em quatro cidades baianas

Publicado segunda-feira, 13 de novembro de 2023 às 05:00 h | Autor: Renato Alban - jornal A TARDE (Salvador, Bahia, Brasil)
 
No Quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas, crianças aprendem sobre o bacundê-bacundê, que parece pique-esconde
No Quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas, crianças aprendem sobre o bacundê-bacundê, que parece pique-esconde - 
 

Pula-macaco, bacundê-bacundê, jaca pirão e corrida de maracá são algumas das brincadeiras que o projeto Ciranda do Brincar busca valorizar e difundir. Criado no ano passado por um coletivo social, a iniciativa escuta idosos de comunidades tradicionais e passa o aprendizado das práticas a crianças dos grupos e também de fora. 

Assim, brincadeiras de povos indígenas, quilombolas, pesqueiros e de comunidades de terreiro foram catalogadas numa cartilha pedagógica, replicadas em oficinas e registradas em uma websérie. O projeto atende oito escolas públicas e comunitárias em quatro cidades baianas. As atividades começaram no dia 1º de novembro e seguem até o fim do mês.

A realização é do coletivo Assessoria Cirandas, que tem 14 anos de atuação no combate ao racismo e na defesa de povos tradicionais. A proposta é utilizar a brincadeira como prática pedagógica e, assim, promover a valorização e difusão das culturas das comunidades tradicionais. Além da Bahia, o coletivo tem projetos no Rio Grande do Norte, Pernambuco e Paraíba.

“O Ciranda do Brincar nasce de uma escuta de comunidades tradicionais desses estados com a intenção de saber como contribuir com o fortalecimento delas”, afirma o coordenador do coletivo, o assistente social João Paulo Diogo. Segundo ele, ao conversar com as pessoas mais idosas das comunidades, o coletivo percebeu a importância das brincadeiras.

“Os mais velhos comentaram como essas práticas tinham gerado repertório para serem o que são hoje em dia, como aprenderam mais sobre liderança e sobre os códigos culturais do território. Entendemos isso como uma ferramenta muito potente”, diz João Paulo. Com o auxílio de educadores, o coletivo criou o projeto.

As oficinas com brincadeiras tradicionais das comunidades estão sendo desenvolvidas em escolas no Quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas; na aldeia indígena Pataxó-Hãhãhãe, no município de Pau Brasil; nos terreiros Banda Lê Kongo e Abasi de Yansã, ambos em Juazeiro; e na comunidade pesqueira Quilombo Alto do Tororó, em Salvador.

Herança cultural

Líder do Quilombo Quingoma, o primeiro do Brasil, Rejane Rodrigues reconhece a importância da retomada das práticas lúdicas. “São vivências do cotidiano que, se as crianças não tiveram, os pais vivenciaram e, dessa forma, essas brincadeiras se tornam imortais. Através delas podemos perpetuar a nossa cultura”, afirma Rejane.

Para a educadora quilombola, “o conhecimento liberta”: “Por meio do conhecimento, podemos nos reafirmar e entender o sujeito preto, qual é essa identidade e preservar a herança cultural”. Para Rejane, com crianças, esse trabalho é mais fácil de ser realizado do que com adultos. “Eles brincam no barro e entendem de onde vieram”.

“Aqui, nós forjamos as crianças para que sejam o bichinho da goiaba, aquele que diverge, o elo transformador”, diz a líder quilombola. O trabalho, afirma, resulta em uma inversão de papéis. “Não só o adulto transforma a criança, mas o contrário também acontece”. Para Rejane, o principal resultado do projeto é o senso comunitário que une e fortalece os membros dessas culturas.

Coordenadora pedagógica do Ciranda do Brincar, a psicopedagoga Sonia Dias tem aplicado a cartilha do projeto na escola comunitária Luiza Mahin, em Salva dor, onde trabalha há 20 anos. “As brincadeiras do Ciranda foram pensadas para realizar um resgate em territórios, inclusive para professores”, diz ela.

Para a psicopedagoga, um dos principais impactos do projeto na Luiza Mahin em um ano de aplicação é a socialização de estudantes com alguma deficiência, seja ela intelectual, auditiva, psicossocial, visual ou múltipla. “Especialmente com crianças com autismo, é através da brincadeira que a gente se apresenta e que vemos a mudança”.

Inclusão

João Paulo explica que a inclusão e a acessibilidade no brincar foram discutidas no desenvolvimento do projeto. “Desenvolvemos uma metodologia que pensa e conta a história desses territórios de comunidades tradicionais e permite trazer a narrativa de inclusão”, destaca o coordenador.

A catalogação das brincadeiras durou quatro meses. “Passamos esse tempo nos territórios escutando os mais velhos e vendo as crianças brincando. Os mais velhos contavam as brincadeiras que queriam no livro e nós registrávamos”.

Entre as brincadeiras, João Paulo cita a bacundê-bacundê, que é semelhante a um pique-esconde, no Quilombo do Quingoma. “É uma brincadeira que surge na época da escravização, quando os mais velhos ensinavam as crianças a fugir e a se esconder”. Já na brincadeira Petrolina x Juazeiro, o “vivo ou morto” dá lugar à alusão da famosa fronteira entre Pernambuco e Bahia.

Na cartilha, após a explicação da brincadeira, o coletivo traz sugestões para acessibilidade e inclusão. Na corrida de maracás, por exemplo, o revezamento do instrumento tradicional dos povos pataxós não pode ter obstáculos, para incluir estudantes cadeirantes, e os locais de passagem do objeto devem ser sinalizados com bandeiras, para informar a quem tem deficiência auditiva. “Se o brincar é direito das crianças, então todas devem ter esse direito”, defende a psicopedagoga Sonia.

Fora do campo virtual

Outro ponto importante que estimulou a criação do projeto foi gerar experiências fora do campo virtual para as crianças. “Hoje, as pessoas pouco brincam, pouco têm contato, o aprendizado de ganhar e perder, por exemplo, está se apagando, hoje está muito associado aos jogos virtuais”, analisa João Paulo.

Para o assistente social, os celulares e outras mídias, abundantes dentro das comunidades tradicionais, devem servir como via para o aprendizado e não como objetivo final. “O mundo virtual não compromete a dinâmica comunitária, o contato pessoal ainda é muito forte”, conta o coordenador do coletivo. Essa dinâmica, assim como as brincadeiras, foram registradas numa websérie.

Com o mesmo nome do projeto, Ciranda do Brincar, a série de quatro vídeos foi lançada no Quilombo do Quingoma no último dia 1º e está disponível no YouTube. A diretora, Dayse Porto, explica que o objetivo do registro foi “documentar memórias interagindo com a atualidade”.

Na websérie, é destacada a relação entre as pessoas mais idosas das comunidades com as crianças, “fazendo essa ponte entre os tempos”, diz Dayse. No filme, a protagonista, a atriz-mirim Mayanna Aleixo, apresenta as brincadeiras junto com educadores e lideranças das comunidades tradicionais. “Ela fez amizade em todos os lugares que visitamos”, conta a diretora.

Com a veiculação dos episódios em unidades escolares, o objetivo do coletivo é que as brincadeiras de comunidades tradicionais cheguem a mais crianças. “A ideia é que seja exibido em escolas públicas e dê suporte para professores em sala de aula”, afirma a diretora da websérie.

 

fonte: https://atarde.com.br/muito/projeto-valoriza-brincadeiras-de-comunidades-tradicionais-1248597


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