... As feridas invisíveis do suicídio em Moçambique

Há dores que não se calam, atravessam o peito e ficam escondidas atrás de sorrisos forçados, de conversas apressadas ou silêncios pesados. Enquanto lê estas linhas, em algum lugar do mundo alguém pode estar a tentar pôr fim à própria vida. A Organização Mundial da Saúde estima que, todos os anos, cerca de 800 mil pessoas se suicidam, uma morte a cada 40 segundos.

 

Em Moçambique, esse drama cresce longe dos holofotes, abafado pelo estigma e pela falta de debate público. O país apresenta uma das taxas mais elevadas de suicídio em África, com 17,3 casos por 100 mil habitantes. Em Inhambane, a média anual ronda os 80 casos, deixando famílias despedaçadas e comunidades sem respostas.

Por trás de cada número há uma vida, um rosto, um vazio que nenhuma estatística explica. Há histórias de quem partiu em silêncio, de quem quase cedeu à dor e de quem encontrou forças para recomeçar. É o caso de Rossina dos Santos. O olhar sereno e o caminhar vagaroso não denunciam a tempestade que a consumiu por anos. No bairro marginal da cidade, onde se senta para conversar, aprendeu a vestir a máscara de quem aparenta estar bem, mesmo quando tudo estava em ruínas.

“Havia dentro de mim uma tristeza profunda, sem fim. Vieram noites sem dormir, baixa autoestima, choro constante, isolamento. Dormia demais e ao mesmo tempo não tinha energia para nada. Perdi o prazer de fazer coisas que antes me davam alegria”, recorda. Entre sorrisos falsos e isolamento, Rossina acreditava que só havia uma saída: acabar com a própria vida. Quatro tentativas depois, incluindo métodos arriscados, ela finalmente buscou ajuda.

“A última tentativa foi um ponto de viragem. Passei a fazer terapia, mesmo com dificuldades para me abrir. Aos poucos consegui explicar traumas da infância, frustrações, depressão. Também recorri a medicamentos para controlar o humor e os pensamentos suicidas”, conta. A fé tornou-se outro pilar de resistência: frequentar a igreja ajudou-a a sentir que ainda valia a pena viver. Hoje, mãe de uma filha, Rossina transformou dor em ferramenta. “Às vezes a pessoa só precisa de alguém que a ouça, sem julgamentos. Isso já pode salvar vidas”, defende.

 

A dor invisível dos que ficam: a perda de um irmão pelo suicídio

Dois anos depois da morte do irmão, Cabral Malandela ainda sente a ferida aberta. “Ele era social, sempre presente, nunca imaginámos que algo assim pudesse acontecer”, confessa, olhos fixos num ponto distante. Ele relembra sinais ignorados: mudanças de humor, isolamento, comportamentos que pareciam pequenos desvios, mas que eram pedidos silenciosos de ajuda.

“O suicídio não é apenas uma perda individual; é um abalo coletivo. Cada um sente a ausência de forma diferente, todos carregamos culpa, dúvida e impotência”, afirma. Cabral acredita que o diálogo, a empatia e a atenção podem salvar vidas. “Mais escuta, mais compreensão, menos julgamentos. Se estivermos dispostos a ouvir antes de condenar, podemos mudar histórias”, conclui.

 

Cuidar do invisível: o olhar da psicóloga sobre o suicídio em Moçambique

O suicídio deixa feridas invisíveis, perguntas sem resposta e sombra de dor que se estende além da morte. Cidália Pascoal, psicóloga clínica, observa histórias de vidas à beira do abismo. “Raramente é um ato isolado. Geralmente é o culminar de um percurso longo, cheio de sinais ignorados”, explica. Sinais como isolamento, mudanças de humor, perda de interesse, quedas de rendimento ou padrões de sono alterados são comuns, mas passam despercebidos.

Cidália destaca a barreira de estigmas culturais: muitos ainda acreditam que o suicídio é frescura ou fraqueza, bloqueando o acesso a cuidados essenciais. Para ela, os familiares também são vulneráveis: “Perder alguém deixa marcas profundas e pode gerar culpa ou risco de pensamentos suicidas. O acompanhamento psicológico é essencial”. Ela defende ampliação de serviços, consultas acessíveis e sensibilização comunitária. “Pedir ajuda não é fraqueza, é coragem. Cada gesto de escuta pode salvar vidas”, conclui.

 

A fé como âncora: o papel da religião na prevenção do suicídio

A religião surge como refúgio para corações em desalinho. Em Moçambique, igrejas oferecem conforto, orientação e esperança. Benjamim Chivale, líder religioso em Inhambane, observa sinais de sofrimento silencioso entre os fiéis. “A Igreja não é apenas culto; é consolo, escuta e presença para quem está à beira de decisões irreversíveis”, afirma.

Chivale explica que ninguém que comete suicídio deseja apagar a vida; procuram alívio para dor insuportável. “O julgamento não ajuda. A Igreja deve oferecer acolhimento, compreensão e encaminhamento a profissionais”, reforça. A prevenção, diz, deve começar na comunidade religiosa: identificar sinais, oferecer apoio e dialogar abertamente. “A fé, aliada à ação concreta, pode resgatar vidas”, conclui.

 

Quebrar o silêncio, salvar vidas: a urgência da ação coletiva

O suicídio não acontece no vácuo. Cada gesto de isolamento, cada noite mal dormida, cada sorriso falso, é um pedido silencioso por ajuda. A sociedade muitas vezes olha para a dor alheia com indiferença, julgando e banalizando sofrimento. Essa apatia custa vidas.

É urgente compreender que depressão, ansiedade e desespero não se resolvem sozinhos. Nas famílias, escolas, locais de trabalho, igrejas e comunidades, é preciso atenção aos sinais, escuta sem julgamentos e apoio concreto. Buscar ajuda profissional, fortalecer redes de apoio e combater estigmas não é opcional; é responsabilidade coletiva.

A sobrevivência exige coragem, mas salvar alguém também. Cada ato de atenção, cada palavra de acolhimento, cada gesto de empatia pode ser a ponte entre a vida e a morte. Precisamos quebrar o silêncio, enfrentar tabus e enxergar a dor invisível. Saúde mental é tão importante quanto saúde física. Cada vida importa, e quando estendemos a mão, oferecemos esperança, futuro e histórias que ainda podem ser reescritas.

fonte: https://opais.co.mz/as-feridas-invisiveis-do-suicidio-em-mocambique/

 


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